Joseli é uma mulher determinada, divertida e muito inteligente. Ela tem 37 anos, mora em Embu das Artes, é mãe de dois filhos e há três anos perdeu completamente a visão em consequência de uma doença hereditária que marcou sua vida desde a primeira infância. O pai dela, seu Geraldinho, também convive desde muito moço com a perda gradativa da visão e hoje enxerga apenas 15% de uma só vista. Apesar disso, ele nunca conseguiu um diagnóstico preciso da doença. Quando a filha nasceu e começou a apresentar problemas, como quedas e esbarrões frequentes em portas e paredes, ele e a esposa, dona Josefa, perceberam que a filha poderia ter herdado a mesma doença que já havia acometido não só o pai como parte da família paterna.
Aos seis anos, Joseli foi levada a um oftalmologista, que diagnosticou apenas um quadro de miopia e astigmatismo. Desde então, passou a usar os óculos receitados pelo médico. Apesar disso, Lili, como é carinhosamente chamada pelo pai, precisava se sentar bem à frente na sala de aula para conseguir copiar as lições na lousa e continuava enxergando pouquíssimo à noite. Por isso, desde cedo teve que conviver com as constantes gozações dos colegas, que tentavam ofendê-la chamando-a agressivamente de cega, como se sua condição fosse mesmo razão para insulto.
Preocupada, Dona Josefa não se deixou dobrar pelo diagnóstico e levou a filha na Santa Casa de Santo Amaro, onde os médicos disseram que o estado da menina era grave e que ela precisava fazer com urgência um exame de mapeamento da retina. Joseli conseguiu encaminhamento para o Hospital São Paulo e, lá, os resultados dos exames não deixaram dúvidas: ela tinha retinose pigmentar, uma doença hereditária que causa a degeneração da retina e provoca a perda gradual da visão, além de edema macular, um acúmulo de líquidos na região mais importante da visão, a mácula, também responsável pela baixa visão.
No Hospital São Paulo, Joseli começou a tratar o edema por meio de injeções aplicadas diretamente nos olhos. “O edema cedia a cada sessão, que era sempre muito dolorosa, mas um mês depois ele voltava”, conta. Já quanto à retinose, pouco ou nada havia para se fazer, já que ainda não há tratamento capaz de cessar a progressão da doença. Até que um dia, assim como aconteceu com o pai, surgiu em seu olho direito uma mancha grande que comprometeu de vez sua visão. “Parecia que um maribondo grande tinha entrado no meu olho. Depois desse dia, passei a enxergar só do olho esquerdo”, conta.
Pouco tempo depois, Joseli se casou com João, seu grande amor da juventude. Apesar da contraindicação médica, em 2002 ela engravidou de seu primeiro filho, o Jean. Mesmo vivendo uma fase de muitas alegrias, a retinose, porém, não estava adormecida. Assim que descobriu que estava grávida de seu segundo filho, Lili foi acometida por uma catarata em seu olho esquerdo, o que a deixou subitamente cega. “Assim que o Lucas nasceu, chorei demais porque eu não conseguia ver o rostinho dele. Não podia conhecer o meu filho!” Quando o nenê completou oito meses, Joseli operou da catarata e, ao chegar em casa, a primeira coisa que fez foi retirar o tampão do olho. “Eu fiquei emocionada demais! Pela primeira vez pude ver o sorriso lindo do meu filho, o filho que eu acabava de conhecer oito meses depois de ter nascido! Foi um sorriso tão lindo que eu jamais vou me esquecer daquele dia.”
Um mês depois, o edema voltou ao olho esquerdo e a visão de Joseli tornou a degenerar-se. “Estava me preparando para ficar cega. Eu sabia que esse dia iria chegar. E acreditava que seria um dia em que eu não mais sairia de casa, nem faria nada de útil da minha vida”, ressalta. Nessa ocasião, Lili viu uma moça cega andando sozinha pela rua, com o apoio de uma bengala. “Achei aquilo incrível. Comentei sobre isso com uma amiga da igreja, que me disse que conhecia uma Fundação que dava assistência a deficientes visuais: a Fundação Dorina Nowill para Cegos.”
Joseli, que até então tinha visão subnormal, foi então pesquisar sobre a instituição na internet e dias depois já estava com o pai batendo à porta da Fundação Dorina. “Chegando lá, fiquei encantada. Não parava de falar para o meu pai: Pai, veja quantas pessoas cegas andando sozinhas de bengala, vejam como elas são bonitas, bem arrumadas e independentes!” Empolgada, ela começou a perguntar para todos os que encontrava pela frente: “Como você aprendeu isso?” Ao que respondiam: “Aqui tem professor pra tudo isso!”
“Nesse dia foi como se um novo mundo tivesse se aberto para mim. Fiz minha inscrição, mas não havia vagas para a mobilidade (técnicas para uso de bengala), nem para o braile. Teria que esperar”, conta. Dois meses depois, a Fundação chamou Joseli para frequentar as aulas de informática. Decidida a participar, Joseli pediu ao pai que a acompanhasse três vezes por semana até a Fundação. Seu Geraldinho, que entende como ninguém o problema da filha, como sempre estava disposto a fazer por ela tudo o que estive ao seu alcance. Assim, fechava o pequeno comércio que mantém na parte de baixo de sua casa e acompanhava Lili até a Fundação. Enquanto isso, Dona Josefa cuidava das crianças e ainda arrumava toda a casa para a filha.
Assim que terminou o curso de informática, Joseli foi encaminhada para o programa de orientação e mobilidade, que envolve fisioterapia, psicologia e a mobilidade com a bengala.
“A gente fica meio bambo quando perde a visão, por isso a fisioterapia é tão importante. Ela trabalha nosso equilíbrio, nossa postura, fortalece os braços e as pernas para a gente não cair à toa”, explica.
“A 1ª aula de bengala foi um dos dias mais felizes da minha vida! Já queria sair andando! Mas precisei controlar a ansiedade. Nas primeiras aulas fui reconhecendo a sala de aula, depois toda a parte interna da Fundação. A professora passava as técnicas necessárias para identificarmos escadas, portas e corrimões”. Só depois de tudo isso é que Joseli pôde ir para a rua. “Mas, antes, a professora me mostrou todo o percurso que eu faria em uma maquete, onde a percorri inteirinha com os dedos. Dei minha primeira volta no quarteirão, sempre monitorada pela professora. “Quando cheguei de volta à Dorina, fiquei tão feliz que saí contando pra todo mundo o que eu havia acabado de fazer!”
Os exercícios de mobilidade na Fundação continuavam e agora o percurso começava a ficar mais longo e complexo. “Numa das aulas, aprendi a andar de metrô e ônibus, como subir e descer de forma correta e segura, como me sentar, como me locomover dentro dos vagões, como lidar com imprevistos. Há técnica para tudo”, reforça.
Na penúltima aula, ela teve de ir sozinha ao metrô e, por fim, deveria ir sozinha de casa até a Fundação Dorina. “Andei até o ponto de ônibus aqui no Embu, tomei uma condução até o Metrô Clínicas, peguei o metrô e depois mais um ônibus até chegar na Fundação. Enquanto percorria o trajeto sozinha, senti medo, calafrio. Mas quando cheguei, parecia que eu tinha ganhado um troféu! Na verdade, eu tirei carta de motorista de novo com a minha bengala”, diverte-se.
A lição que Lili tirou de toda a sua experiência é a mesma que ela tenta passar adiante, perpetuando o ciclo de fé e determinação que ela entendeu como sendo o melhor caminho a seguir. “Estava tão desesperada, tão inconformada que perguntei pra Deus: Por que eu, meu Deus, por que justo eu? E nesse dia eu consegui compreender tudo. Ele me respondeu: Porque eu preciso de você para conseguir ajudar outras pessoas.” E assim Joseli escolheu trilhar seu caminho: “Da mesma forma que um dia eu me inspirei em pessoas cegas que viviam suas vidas plenamente dizendo para mim mesma Se elas podem, eu também posso, hoje tento mostrar para pessoas que estavam desesperadas como eu estive um dia, que, assim como eu consegui dar a volta por cima, elas também podem. Se eu conquistei a vitória, por que você não vai conseguir também? Enquanto há vida há esperança!”
Desde que nasceu, Joseli precisou conviver arduamente com a perda gradativa da visão e com todas as duras consequências que essa condição traz para a vida de uma pessoa. Mas, ao mesmo tempo, ela encontrou em sua história pessoas sempre generosas e dispostas a apoiá-la em tudo o que fosse possível para que o sentido da sua vida pudesse, enfim, ser revalidado. A começar pelo pai, seu Geraldinho, que abriu mão de si mesmo ao dedicar a própria vida ao tratamento da filha. Sempre muito esperançoso, acompanhou Lili a cada aula e a cada sessão que ela fazia na Fundação Dorina, tantas vezes fossem necessárias, até que ela se tornasse novamente uma pessoa independente. “Esse alicerce foi o que me manteve viva e foi ele que tornou possível para mim a descoberta desse mundo cheio de possibilidades em que eu vivo agora. Um mundo em que eu tenho a Fundação Dorina como minha segunda família, afinal, foi lá que eu redescobri a vida e onde reencontrei a mim mesma”, diz Lili, com um sorriso encantador, capaz de iluminar todos que estão perto dela.